A Insolação

 INSOLAÇÃO
Julie Dumont – The Bridge Project

Andou por horas sob o sol escaldante, traçando um caminho através das ervas secas, empoeiradas pela terra árida, olhando o horizonte distante. A sua visão ficou turva, o céu parecia em fusão, a luz se tornou vermelha. Ela está agora refletida nas asperidades do asfalto cinza chumbo da rua que cintila. O céu cedeu lugar a prédios altos, cujas janelas espelham os raios solares. O calor insuportável faz ondular o chão que parece o mar. Avista um parque, um oásis perdido na selva de concreto, teima que seja uma alucinação provocada pelo calor e se refugia embaixo de uma árvore para se deitar ali, suado e sedento, as costas apoiadas na sua casca rugosa.

Entre sua Argentina natal e o caos de São Paulo onde se radicou há um pouco mais de uma década, Martin Lanezan traz na sua obra elementos das suas vivências no pampa, os ocres e vermelhos da terra queimada pelo sol, o tempo que se alastra vagarosamente, embalado pelo ritmo da natureza, das estações e da dança do sol e da lua. Ele fala de um lugar onde viviam curandeiras com ervas, cristais, chifres e crinas de cavalos, com rituais e significados que marcavam os dias e os anos, contrastando com o frenesi da cidade onde escolheu morar.Desde o romantismo, a arte procura significados na natureza e na humanidade, na busca de uma essência além da aparência e das construções culturais. Usando símbolos e materiais diversos, artistas de todas as épocas procuraram uma utópica fusão com o sublime e a sua transposição no campo do tangível, a tradução do espiritual no campo visual, se tornando alquimistas e xamãs.

É este equilíbrio entre natureza ancestral e contemporaneidade e as facetas da sua identidade de migrante que aparece na produção de Martin Lanezan. Escolhendo materiais simples do cotidiano como o tecido, o papel machê, galhos ou flores secas, o artista traz uma circularidade na vida das coisas e se afasta deliberadamente de um sistema de produção e consumo rápido para propor uma reflexão sobre a essência do tempo e da matéria: de onde vem, como se apresenta perante os olhos e onde seguirá depois de nós. Em paralelo, a lentidão refletida no tempo da pintura, nos processos da tecelagem, da costura, da assemblagem dos elementos que ele junta, retoma aqui a sua dimensão primordial.

A contrafluxo de uma estética lisa e padronizada, as obras de Lanezan apresentam uma rugosidade, uma organicidade que as aproximam da natureza. As suas pinturas, evocam uma inocência perdida e evidenciam, com suas figuras humanas fantasmagóricas, um tempo que existe além do nosso e borra as nossas feições. A baixa saturação dos tecidos utilizados, queimados por alvejante ou aclarados pela passagem do tempo, falam do sol e de durações de exposição, assemblados por costuras aparentes, como tantas pontes entre momentos e geografias. A obra de Lanezan se coloca assim no campo do realismo mágico, no limiar do horizonte que separa o que é do que já passou, a terra do céu e delimita os planos das suas paisagens oníricas.

Muito além da aparência, o artista traz na sua produção um comentário sobre a identidade como instrumento de projeção no presente, sobre um jeito de se mover no mundo e conciliar vivências, sobre a preciosidade das tecnologias ancestrais no contemporâneo, e a importância do devaneio, dos sonhos. Lanezan elabora assim um ensaio poético, um etos ecológico, no qual o ócio criativo de onde surge a inspiração e os versos dos poetas é sublimado, tecendo com seus fios, galhos e traços, um elogio do casulo construído por um bicho, com saliva, paus e terra, um lugar de aconchego e transformação por dentro.