Silêncio em Notas Ocres

Silêncio em notas ocres
Theo Monteiro

O mundo que Gustavo Diogenes nos apresenta, pelo menos para os brasileiros, não é desconhecido. Vários símbolos de nossa sociabilidade, de nossa cultura visual, estão ali: cadeiras de plástico, mesas de sinuca, garrafas de ypióca, igrejinhas, vilarejos, fachadinhas, carros populares e até mesmo alguns bois perdidos. Existe algo naquele mundo que nos é profundamente familiar. É como se nosso artista nos levasse diretamente para o palco da vida cotidiana do Brasil (ou de parte dele). Consegue-se rastrear ali, com certa frequência, momentos nos quais o mundo rural e o urbano se confundem, se misturam, reflexo de nosso processo de industrialização inconcluso e desigual. Nossa cultura de massa, nosso mundo pop, tecnológico, é verdade – mas com certo traço de improviso e artesanalidade – igualmente é tema do pintor. O inconfundível copo americano, presença obrigatória em qualquer mesa de bar e personagem recorrente em alguns quadros, não deixa mentir, bem como as motocicletas. Nesse palco brilhantemente montado, contudo, faltaram os atores. Eis aí o primeiro sinal de estranheza.

Esses cenários, típicos de vida pujante, são completamente desertos, desolados. Um lampião aceso, cadeiras fora do lugar, uma moto estacionada e luzinhas acesas no horizonte são indicativos de presenças, mas elas não ousaram dar as caras. Seus signos são rastros, e da maneira como estão posicionados acabam se configurando como acentuadores de ausências. O que, por princípio seria familiar, se torna estranhamente familiar. Pode-se pensar em Edward Hopper e em suas cenas tanto melancólicas quanto silenciosas. Mas, se estes dois se aproximam pelo silêncio, outra coisa rapidamente os coloca em mundos totalmente distintos: a luz.

O mundo que o pintor nos apresenta é um mundo quente. Em todas as telas predomina um tom amarelado, e um amarelado ocre. Não é um amarelo que vem diretamente do sol, ou das flores, como em Van Gogh. Trata-se de um amarelo aparentemente filtrado pela areia ou pela terra. Existem outras cores, invariavelmente, mas nenhuma parece escapar dessa estranha luminosidade arenosa. Mesmo as cores mais vibrantes acabam adquirindo um sotaque ocre. Não havendo pessoas nesse mundo semi-desabitado, nessas cidades fantasma, maior protagonista dessas telas é a luz, e ela banha a tudo. Nas pinturas noturnas, onde o amarelo do sol já se recolheu, o ocre volta agora através das fontes de luz artificiais. Ao fim e ao cabo, ele está sempre lá. Basta uma fonte de luz e ele se acende.

Falando em noite, chama a atenção um conjunto de pequenos quadrinhos amplamente noturnos do artista. Se com certa frequência o enquadramento de Diogenes se dá sob aspectos de nossa vida cotidiana, nesse caso ele se volta para paisagens mais amplas, talvez contempladas a partir do alto de estradas, ou empoleirado sobre cânions, pedregulhos e outros elementos geológicos visíveis nos sertões profundos. Noturnas, essas paisagens são claríssimas, e construídas de um preto quase roxo. Só não são plenamente abstratas por conta de pequenos pontos de luz (sempre em amarelo ocre), que assinalam a presença de igrejinhas e casarios esparsos. Tais focos luminosos, perdidos em meio a um breu venoso, acabam fazendo das cenas pequenos esquetes do mundo das trevas. Eles são mais próximos das labaredas infernais do que da luz elétrica contemporânea.

Diogenes também desenvolve algumas pinturas noturnas meio abstratas. Se nas recém mencionadas as vistas são mais distantes, aqui o componente telúrico parece se acentuar. Empastos de tinta adensados, bem como pedaços de tela cortados, fazem dessas composições tanto matéricas quanto escuras. Se nas mencionadas anteriormente o ocre se materializa através da luz, aqui o pintor parece buscar esse tipo de tom na terra, no solo. Tons escuros e arroxeados são temperados com notas amareladas, criando uma aridez neoexpressionista. Tal como nas paisagens noturnas, o telúrico aqui é mais próximo do carvão do inferno do que de montinhos de terra por aí.

Dessa maneira, Gustavo Diogenes lê uma certa realidade brasileira através de notas ocres, notas essas que variam através da luz, da terra, e que graças a um silêncio profundo são o principal ingrediente desses quadros tão estranhamente familiares.