Nascemos em Poemas Diversos


“Nascemos em poemas diversos”
Texto de Ricardo Ramos Gonçalves
Vivemos tempos marcados por fissuras cada vez mais evidentes. A polarização ideológica ocupa não apenas o espaço da política institucionalizada, como se infiltrou no quotidiano, através de afetos e discursos obscurecidos. As fronteiras — geográficas, simbólicas, culturais — que, no princípio do século, pareciam esbater-se, erguem-se agora em virtude de uma renovada força de exclusão, movida por mecanismos de controlo e proteção. Bem distantes da época das cruzadas, travam-se agora guerras culturais e identitárias, marcadas pelo fanatismo de crenças rígidas e intocáveis, através das quais se fomenta o diálogo por meio do ódio e da violência.
Perante um cenário de fragmentação aguda, torna-se imperativo que o nosso olhar se debruce sobre as dimensões subjetivas que a arte, de forma ontológica, pode resgatar — seja pela empatia e capacidade de compreensão do outro, seja pelo simples facto de sublinhar a potência criativa e fruitiva que reside em cada um de nós.
É justamente por isso que entrevemos nesta exposição o reconhecimento linear e rigoroso de que, embora mapeados por histórias e geografias distintas, é nos encontros possíveis que se descortina a virtude de uma história humana partilhada. O verso do poeta brasileiro Paulo Leminski (1944–1989), que lhe dá título, surge então como proposta de deslocamento: da lógica da separação para a ética do encontro num espaço comum. O mesmo “comum”, recorrendo à premissa de Jean-Luc Nancy, que já não é uma evidência, mas uma construção frágil e urgente — não se trata do que partilhamos por sermos idênticos, mas do que arriscamos ao coexistir na diferença.
Contra o pano de fundo do silêncio que carrega séculos de uma violência exacerbada — vincado pela relação colonial —, este espaço expositivo propõe-se como território em suspenso, onde as obras não ilustram discursos, mas instauram regimes de sensibilidade capazes de reconfigurar o visível, o pensável e o dizível. Estamos perante uma arte que, afinal de contas, não redime, mas desestabiliza — e é nesse movimento que se torna possível escutar o que foi silenciado, dar corpo ao que foi negado pelas vozes hegemónicas e tecer laços improváveis de comunhão.
Voltemos à proposta: num mesmo espaço, duas galerias, dois territórios de origem e a intersecção de artistas e de práticas numa harmonia que não se constrói por um elo expositivo inflexível, mas tão somente por uma proposta de fraternidade. Falamos de uma convivência radical, onde se insiste na partilha — gesto poético e político que, retomando Leminski, nos leva a habitar a mesma estrofe, a mesma classe, o mesmo verso e a mesma frase.
Com trabalhos de Albuquerque Mendes, Allann Seabra, Andrea Fiamenghi, Dylan Silva, Diogo Nogueira, Jarbas Lopes, João Paulo Balsini, Maria José Oliveira, Maria José Palla, Milena Oliveira e Nuno Ramalho, a mostra coletiva coloca-se sob a cifra da criação de comunidade. A mesma jangada de pedra, onde diferentes orientações estéticas e temáticas se aglutinam entre si. Do âmbito figurativo — reconhecível em grande parte das obras — ao trabalho mais próximo da tekné, do gesto e do manusear das matérias, a exposição não se organiza pelo contraste ou pelo confronto entre potências criativas, mas pela possibilidade desse encontro.
São, afinal, linguagens diversas que não procuram resolver as tensões do nosso tempo, mas sim habitá-las. Em alguns momentos com subtileza, noutros com fricção, são linguagens respondem diretamente à complexidade que nos atravessa. Por isso, sem um percurso pré-definido, somos convidados a deambular neste encontro impensado: das figuras em comunhão de Diogo Nogueira às partituras rítmicas de Allann Seabra; das evocações poéticas de Maria José Oliveira às ritualidades simbólicas que ecoam nas obras de Nuno Ramalho e Andrea Fiamenghi; passamos ainda pelas figuras meditativas de João Paulo Balsini e de Dylan Silva, pelo ímpeto dos retratos de Maria José Palla e pelo universo expressionista de Albuquerque Mendes, até desaguarmos no trabalho meticuloso de Milena Oliveira e de Jarbas Lopes — obras que, além de uma crítica implícita à massificação do consumo, resgatam o valor do artesanal.
Cada peça, com sua singularidade, contribui para a construção de um léxico comum. Não se busca aqui um centro unificador, mas a afirmação de múltiplas margens que se entrelaçam. Neste espaço de tensão criativa, as estéticas não se anulam: escutam-se. A arte torna-se política não por representar o mundo, mas por redistribuir o que nele pode ser sentido e pensado. É nessa partilha — fragmentária, porosa e vibrante — que se esboça a possibilidade de um comum ainda por construir. E talvez, como sugere Leminski, seja mesmo essa a vocação do poema: fazer da linguagem um lugar habitável por todos.