Colhi do Próprio Sonho uma Sempre-Viva Amarela

Colhi do Próprio Sonho uma Sempre-Viva Amarela
Priscyla Gomes

Há sonhos que nos visitam em silêncio, como uma brisa que não pede licença. Outros irrompem como marés, nos arrastam para dentro de imagens que jamais vimos antes. Mas há também os que chegam em cor: não narram, não explicam — apenas brilham, ardem e desvanecem.

A dimensão simbólica do sonho reside justamente na sua capacidade de condensar o indizível, aquilo que escapa à razão discursiva. O sonho pensa em imagens, como afirmou Sigmund Freud, e é através de imagens que ele comunica.

Desde os primórdios das civilizações, o sonho habita uma zona limítrofe entre o sagrado e o enigmático, o íntimo e o coletivo. Não é por acaso que tantas culturas, em distintas latitudes e tempos, atribuíram ao sonho uma função revelatória: fosse como mensagem divina, fosse como instrumento de cura ou profecia.

No mundo antigo, sonhar era mais do que um evento noturno: era um acontecimento simbólico e ritualístico. Povos mesopotâmicos, egípcios e maias concebiam os sonhos como viagens da alma, visitas de deuses ou espíritos, atravessamentos de mundos invisíveis. O sonho era um meio de acessar verdades ocultas, de revisitar o passado ou antever o futuro. Já nas culturas monoteístas, os sonhos podiam ser canais de revelação divina ou de uma insinuação demoníaca.

Com a psicanálise, mais precisamente com A interpretação dos sonhos (1900), a leitura simbólica do sonho ganhou novas camadas. Sigmund Freud fez do sonho uma estrada para o inconsciente, um meio de acesso aos desejos recalcados. Muito desse acesso, no relato analítico vislumbrou no sonho uma forma de autoconhecimento.

Nessa fronteira entre o visível e o inefável, o sonho em suas diferentes acepções tornou-se uma potente fonte para a investigação artística. Muitos foram os artistas que se deixaram atravessar pelos sonhos. Francisco Goya, Max Ernst, Salvador Dali, Frida Kahlo — todos, a seu modo, traduziram o sonho em representação.

Colhi do próprio sonho uma sempre-viva amarela reúne uma série de trabalhos recentes da artista Jade Marra em que a investigação do sonho trouxe novos percursos para a sua prática de ateliê. Com uma produção pictórica bastante ancorada na fotografia e no realismo, Jade abraçou nos últimos meses uma nova rotina em que a tradução dos sonhos foi paulatinamente desdobrando-se em gesto e cor.

Para a sua escuta dos ecos mais profundos do ser, Jade iniciou com a transposição da tela para o espaço do quarto: registrava, no momento do despertar, as imagens que surgiram em sonho. Dessa nova rotina estabelecida, criou uma espécie de mapa onírico, em que fluidez das formas pairava sob um intenso azul. Paulatinamente, a artista resgatou imagens a fim de devolvê-las ao mundo como enigmas visuais.

Ao recolher as visões do sono, Jade recriou atmosferas, associando elementos com uma lógica interna que escapa à vigília. Um processo de captura e metamorfose. Temas caros da sua produção pictórica, como o resgate do cotidiano, de gestos prosaicos e das dinâmicas de afetos, voltam à tela com novos contornos. Oriundos dessa nova rotina, traços mais fluidos, livres e desenvoltos passaram a delimitar suas formas, a possibilitar que a própria artista se desprendesse do rigor mimético de alguns elementos.

No conjunto de obras realizado a partir desse novo processo, o sonho não é apenas tema: é meio, é método, é membrana. Não à toa, muitas das telas expostas nesta mostra trazem um díptico correspondente: a cada incursão figurativa, a artista desenvolvia uma abstração complementar. Lado a lado, essas obras revelam a dimensão sinestésica desses sonhos em que pulsam os azuis profundos, os amarelos solares e vermelhos acolhedores.

Sonhar cores é, para Jade Marra, uma forma de intuir o mundo. É ver antes de ver. É tocar o que ainda não tem forma. A artista recolhe o que o inconsciente murmura, e com pincel, traça mapas de um território inabitável. O sonho ganha corpo, pele, umidade e calor, mas não perde seu mistério. Ele se faz visível, mas não se deixa capturar por inteiro.

No afã de fixar o efêmero, as pinturas de Jade emergem como vestígios de imagens que se recusam a desaparecer ao despertar. Mais do que ilustrar seus sonhos, Jade os habita e nos convida a habitá-los com ela. A artista partilha conosco breves resquícios de sua infância, nos transporta para paisagens aquáticas e jardins repletos de lirismo, faz de seu mais terno afeto uma lembrança familiar.

Colhi do próprio sonho uma sempre-viva amarela1 reúne esses mapas do invisível jadianos, como rastros de um território que se move. Nesse espaço pictórico dilatado, onde tempo, afeto e matéria se confundem, sonhar torna-se uma prática do gesto e do olhar. E pintar, um modo de permanecer em estado de sonho, mesmo de olhos abertos.

Priscyla Gomes
curadora


Adélia Prado – Um sonho

Eu tive um sonho esta noite que não quero esquecer,
por isso o escrevo tal qual se deu:
era que me arrumava pra uma festa onde eu ia falar.
O meu cabelo limpo refletia vermelhos,
o meu vestido era num tom de azul, cheio de panos, lindo,
o meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavam
do contato da seda. Falava-se, ria-se, preparava-se.
Todo movimento era de espera e aguardos, sendo
que depois de vestida, vesti por cima um casaco
e colhi do próprio sonho, pois de parte alguma
eu a vira brotar, uma sempre-viva amarela,
que me encantou por seu miolo azul, um azul
de céu limpo sem as reverberações, de um azul
sem o ‘z’, que o ‘z’ nesta palavra tisna.
Não digo azul, digo bleu, a ideia exata
de sua seca maciez. Pus a flor no casaco
que só para isto existiu, assim como o sonho inteiro.
Eu sonhei uma cor.
Agora, sei.


1 Colhi do próprio sonho uma sempre-viva amarela” remonta a um verso da poetisa mineira Adélia Prado cuja um dos eixos articuladores do universo poético é a vida cotidiana e o espaço doméstico