É melhor todo mundo ir embora, Malu Pessoa Loeb


É melhor todo mundo ir embora
Theo Monteiro
A água parece inundar todo o cenário. Constituída de uma pincelada diáfana, em tons que vão de azul luminoso até cinza leitoso, ela se confunde com o céu, feito de matéria pictórica semelhante. A luminosidade desse espaço é fria, nebulosa e fantasmagórica. Igualmente fantasmagóricos são os vestígios humanos que aqui parecem flutuar, sem rumo e sem função. Não tem ninguém aqui, pelo menos não tão visível. Um pedalinho abrasadoramente rubro surge imponente no horizonte. Uma estátua de Krishna, construída por linhas elegantes, bóia em meio a esse indefinido corpo d’água. O capô de um carro submerge, e próximo a ele algo que parece ser um bote salva-vida luta para não desaparecer em meio a misteriosa bruma.
Na parte inferior esquerda da composição, está uma espécie de tábua de salvação. No entanto, não existe ninguém aqui tentando se salvar. E o aparentemente firme elemento de apoio rapidamente se dilui e parece se misturar em meio a massa pictórica. Algumas palavras, frases ou restos de textos, ao lado de garatujas e formas rarefeitas também dão o ar da graça na composição, se destacando os dizeres: “é melhor todo mundo ir embora”.
As pinturas de Malu Pessoa Loeb, como a analisada acima, trazem elementos por nós já amplamente conhecidos. Seu ateliê é repleto de imagens, textos e manchetes extraídos de jornais e revistas de grande circulação, que ali se agrupam em conjunto quase “instalativo”. Desse “dicionário” de imagens e formas, a artista extrai tudo aquilo que povoa suas composições.
No quadro, entretanto, tudo parece descontextualizado, perdido. Os fundos construídos pela artista são esbranquiçados, esfumaçados e turvos. As coisas, nesse estranho cenário, não criam vínculos entre si. Inexistem pontos de apoio ou referência. Trata-se de uma figuração quase vestigial. Alguns episódios, ou pedaços de episódios, nos são conhecidos: campos de refugiados, emigrantes, animais vivos e mortos, muros, fábricas poluentes.
Malu lança mão nessas composições de um colorido bruxuleante, luminoso. Longe de acalmar o olhar ou oferecer alguma espécie de alento a esses cenários desoladores, ele tem aspecto artificial, sintético, bem próximo do venenoso ou tóxico, como os dejetos da indústria química que poluem nossos solos, rios e mares.
Entram em cena então as palavras, ora articuladas em pedaços de frases, ora totalmente isoladas. Se suas imagens provém quase todas de jornais e mídias impressas, o mesmo pode-se dizer de seu material letrístico, do qual a artista propositalmente conserva a tipografia presente na fonte impressa original, dado que é exatamente dessa forma que tais informações e relatos nos são apresentados.
A artista em questão nos apresenta um mundo que, através de uma pincelada diáfana, se desmancha, evapora, se liquefaz a olhos vistos. Diásporas, guerras, refugiados, aquecimento global e extinções em massa. Todo esse prelúdio apocalíptico diariamente narrado (ou editado) por nossos jornais, que cada vez mais nos familiarizamos, é contado por Loeb como sendo, na verdade, estranhamente familiar. Em meio a essa quase distopia, no entanto, permanecem elementos singularmente humanos, que nos insistem em lembrar que ainda existe vida ali, ainda que quase se apagando. Como em muitas ficções científicas distópicas de futuros não tão distantes assim, como “Laranja Mecânica”, “Blade Runner” e “Mad Max”, diante do futuro que se apresenta, talvez seja melhor “todo mundo ir embora”. Mas, para bem e para mal, teimamos em permanecer…