A Saudade Que Anda Comigo

A saudade que anda comigo
Giancarlo Hannud

Do que são feitas as memórias coletivas de uma família? Qual o papel exercido pelo indivíduo no conjunto destas memórias, qual seu poder de ação, bem como de integração ou recusa, na manutenção, produção e continuação dessas mitologias banais de coletividades passadas? E finalmente, qual parcela dessa carga grupal é respaldada pela realidade, e o quanto dela não seriam meras fantasias comunitárias, delírios grupais que contamos uns aos outros na esperança de obter um certo sentido em meio à esquálida bagunça de sempre que é a história dos fatos? Essas são algumas das questões que se apresentam ao nos confrontarmos com os trabalhos apresentados por Allann Seabra na presente mostra, A saudade que anda comigo, uma série de desenhos produzidos sobre manuscritos musicais que buscam o ativo apagamento de seu conteúdo originário por meio da ação ocultante do artista. A essência da existência destes manuscritos, produzidos para a execução de peças musicais populares, boleros, dobrados, valsas, choros e pasodobles, por bandas chefiadas por seus antepassados que lhe foram legados como herança familiar, encontra-se aqui suprimida graças à ação pseudo-anedônica de Seabra, que cobre com grossas linhas de azul todo e qualquer dado que pudesse nos fornecer pistas do sonido dos quais os manuscritos são o projeto, deixando para trás somente os dados mais comezinhos de suas narrativas: datas, lugares, nomes e títulos.

O essencial, motivo último da conscienciosa paciência de seus antepassados, resta encoberto. Nessa obsessiva função de ocultamento, Seabra não só apaga o resultado da tradição musical de sua família, tradição à qual também pertence, sendo ele um proficiente musicista, mas também nos direciona as atenções ao quê de mais prosaico restou desta tradição, suas notas de rodapé do cotidiano.

Para continuar é necessário volvermos no tempo e nas latitudes para chegarmos a Portugal, mais precisamente Aveiro, local de nascimento do bisavô de Seabra, músico de banda transferido ao Brasil na primeira metade do século XX. Seus filhos, nascidos em Manaus, deram continuidade a tradição musical após se radicarem em São Paulo, tocando no intervalo de programas de rádio da década de 1940. A tradição teve continuidade com seu pai e tio, ambos músicos, e encontra sua atualidade na pessoa de Seabra. Como pode-se ver trata-se de uma história que é de todo banal, corriqueira, como as de tantas outras famílias que de uma forma ou outra se definiram e se entenderam pela via de seus ofícios, bem como inteiramente masculina, as personagens femininas apagadas pelos supostos mitos varonis de seus companheiros, repetindo mais uma vez o corriqueiro da narração. O fato de seu bisavô ter abandonado a família em direção à terra natal pouco após a transferência a São Paulo, mais um dos mitos familiares de Seabra, nos aponta uma direção, um ponto de quebra imagética das narrativas familiares, quase sempre elogiosas e afetivas. Essa ausência voluntária, e a ausência do resultado desse abandono até mesmo nos pormenores não encobertos dos manuscritos musicais, nos sugerem a ambiguidade e o conflito presentes na ação de apagamento de Seabra, bem como sua sugestão daquilo que resta além. Ao obscurecer o projeto musical, espólio provindo originalmente de seu bisavô, ele nos abandona face ao corriqueiro da narrativa: homens que abandonam mulheres e famílias, imigrantes que atravessam os mares, fazem novas histórias em terras estrangeiras e apagam suas saudades. Mas nem todos, como apontado, têm lugar ou partilham dessas histórias. São as ausências que definem essas narrativas, não suas presenças. Assim como é na ausência da música que se operam os trabalhos de Seabra.

Desde há muito Seabra vem trabalhando com as marcas e marcações deixadas pelo corpo, como em sua série Sudário, na qual o artista imprime a ação de seu corpo sobre uma tela esticada ao chão. Ele assim registrava a passagem de seu corpo, no tempo, sobre o espaço, um registro de sua passagem. Mas se antes seu trabalho era de registro, ele agora se reduz ao apagamento pela marca, aniquilando a música de manuscritos musicais para dirigir nossas atenções ao mais banal de seu conteúdo, desta forma tornando épico o cotidiano da vida. A passagem nesse caso não é a de seu corpo no tempo sobre o espaço, mas antes a passagem pelo mundo, pelo tempo e espaço, de seus antepassados. Portugal, terra de seus ancestrais, nos chega nesses desenhos como uma saudade sugerida, nova presença no espaço de memórias familiares, espaço de integração a um passado deixado pra trás, mas que ainda persiste nas tradições, fantasias e cacoetes de sua família. Nomes de canções, de lugares, pessoas e datas entremeiam-se numa teia de azul e vazio nestes belos desenhos de esquecimento e lembrança. Em sua ação sobre esses manuscritos tornados inúteis, Seabra direciona sua força otimista no vazio melancólico da lembrança. É dessa saudade sem objeto definido que nos surgem esses desenhos, fragmentos de uma narrativa incompleta que Seabra carrega consigo.