Amarras, Larissa Camnev

Amarras, Larissa Camnev
25 de maio de 2023 zweiarts

Amarras, Larissa Camnev

“O corpo orgânico, segundo a antiga teologia platônica,
é apenas a primeira roupa da alma”.
A Vida Sensível, Emanuele Coccia

Um toque sutil nos joelhos da menina. A famosa frase caminha em geral na sequência de outra, que diz: “fecha as pernas”. A ordem dada pela voz branda da bisavó de Larissa Camnev faz parte do vocabulário verbal de toda mulher. Por anos recebemos essa instrução, encabeçada por outras que desaceleram a espontaneidade feminina em contrapartida à libertação do sexo oposto. Esse ditado, parte da ancestralidade que compõe a produção da artista paulista, é o ponto de partida da série que guia a mostra “Larissa Camnev: Amarras”, sua primeira individual na galeria Bianca Boeckel

A linha que Larissa utiliza para unir suas pernas e delimitar os espaços de seus membros com fibras elásticas, tecidos, fitas métricas e outros suportes é a mesma que coseu as vestes produzidas por suas familiares, num vai e vem que demarca o corpo. Filha de estilista, neta de modista e bisneta de tecelā, tal relação com nossa estrutura e seus limites físicos começou cedo, no ateliê da família. Mas o reconhecimento como artista desabrochou por meio da fotografia, pela qual pôde reconhecer sua própria estrutura física, transporte neste mundo, que vive em eterna transformação.

O controle e a opressão, assim como sua soltura pelo pensamento contemporâneo, expõem o novo feminino presente na artista, pronto para o embate atual que vivemos. Isso fica claro em A única mulher que andou na linha, o trem matou, nome da instalação que ocupa o primeiro salão da galeria, composta por um par de sapatos de salto alto, carretilhas e linhas. As duas últimas, comuns ao universo da costura, nos obrigam a caminhar adiante, já que não podem ser rebobinadas. Assim, o trajeto segue, em constante abertura para a rota que desejamos, em resposta às falas sociais que voltam a surgir na tentativa de aprisionar a mulher.

Interromper o curso da história linear e assim redimir o passado à luz da urgência do presente, como defende o filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamin (1892-1940), é um dos caminhos que percorrem a produção de Camnev e a escolha de suas matérias-primas. Saltos, meias, manequins, agulhas retomam a discussão sobre a fetichização dos corpos, assim como nos põem à prova sobre a dor e a estrutura masoquista da qual nos tornamos reféns. Em contrapartida, a artista nos mostra tais objetos contextualizados em funções distintas, como em um aviso sobre seus verdadeiros objetivos e propostas. É o caso das meias-calças, que durante a guerra não podiam ser compradas por muitas mulheres. Aprisionadas em padrões estéticos, elas rendiam-se a um aparato que desenhava a costura da peça em suas pernas, como para simular uma sensualidade inexistente naqueles tempos. O objeto, que originalmente apontava para o corpo com um lápis ou caneta, é substituído por uma grossa agulha, que demarca e fere o feminino.

A própria meia-calça, que aperta e retém a carne, também aparece em diversos trabalhos, seja para simular uma região corporal, como em Umbilical, na qual a trama romena é criada no mesmo tamanho do cordão que une mãe e filho, como também para aprisionar por completo nosso ser, em séries anteriores criadas pela artista, nas quais simula-se uma espécie de sufocamento causado pelo material. A cor de sua pele, que repetidamente aparece na produção de Camnev, também retoma o eixo de nosso invólucro, remetendo “a pele dos dois sexos – os órgãos sexuais, mas também os corpos das pessoas de sexos diferentes que não são nada diferentes. Talvez seja na própria pele, na troca intensa de toques, fricções, pressões e derramamentos que a diferença sexual faça-se ainda menos diferente”, como reflete o filósofo francês Jean-Luc Nancy (1940-2021). É através de um trabalho consistente que Camnev discute o papel feminino, refletindo também sobre as distâncias que nos foram impostas e amarras prontas para serem estendidas ou rompidas. Um passeio intuitivo pela formação do nosso ser.

Ana Carolina Ralston
Curadora