Panteão de Lampejos

Panteão de lampejos
Theo Monteiro
A memória é algo que caminha continuamente ao lado de nossa essência, nossa identidade, tanto num sentido subjetivo quanto numa esfera social e política. Somos o que somos, e quem somos, por conta das transformações por que passamos, das histórias que vivemos (ou inventamos) e das experiências e conhecimentos que adquirimos. Da simples identificação ao argumento de autoridade, as memórias estão na mais primordial constituição do mundo em que vivemos. Curioso que algo tão basilar e constitutivo persista, na maior parte das vezes, por meio de narrativas. Sua materialidade ou tangibilidade não existe. Ainda que elaboradas num presente, pertencem e se referem ao passado. Daí sua fragilidade. Conforme vamos envelhecendo e o tempo passa, as mesmas se alteram, se reelaboram ou simplesmente desaparecem, tornando-se cada vez mais vaporosas e difusas. Falamos, portanto, menos da pedra fundamental de algo e mais de um rastro, que, de tão frágil, pode facilmente se dissipar.
A presente exposição apresenta o trabalho de quatro artistas de diferentes linguagens e percursos, mas que trazem em seus trabalhos (ou parte deles) essa matéria vestigial, fugidia e metamórfica, ainda carregada de significados, porém muito reduzida ou erodida, de modo que não se pode identificá-los com clareza. Nathalie Ventura é uma delas, com sua bússola poética voltada para a natureza e para a maneira como a assimilamos. Em Memorial para todas as Montanhas que se foram, trabalho instalativo, emergem do chão placas de mármore de carrara e contrapiso. Sólidas, mas de aparência gasta e quebradiça, parecem evocar montanhas, serras, cordilheiras e acidentes geográficos. Evocação essa sugerida pela silhueta e posição das mesmas, afinal, trata-se de uma recordação, um vestígio. A paisagem em si não está mais lá, vemos apenas detritos e fragmentos do que um dia talvez tenha sido grandioso e imponente.
A floresta dá vida a seres desconhecidos toda vez que queimamos suas raízes, por seu turno, tem conformação menos tectônica e mais orgânica. Pelo material que a constitui, carvão e madeira, é verdade, mas também pelos compridos e misteriosos espinhos, que aspiram um misterioso encontro: Talvez um beijo? Instrumento de defesa? Órgão tátil? Não sabemos.
Mas tem algo ali quase vivo, ou que já foi vivo. A matéria, contudo, se transformou. A natureza consiste em ciclos de transformação de matéria que se sucedem. Nós, que impregnamos as coisas de afetos e memórias, também. Ao deixarmos nossa marca, contudo, impregnamos nesses processos mistérios, histórias e memórias. Ventura congela esse processo de transformação, físico-químico, mas injeta nele algo de afetivo, ainda que muito limiar.
Marina Schroeder, traz esse componente para uma abordagem mais histórica, não num sentido panfletário, mas de buscar compreender essas transformações por uma chave cultural e coletiva. Nos seus Revelados, pinturas a óleo sobre papel vegetal revestido de leves camadas de cimento e fragmentos de rosas, vemos o que parecem ser resíduos de antigas imagens, já muito gastas. A atmosfera geral da composição é plúmbea, densa, escurecida. Os motivos ali presentes são conformados por traços espessos e muito escuros, como se tivessem que se impor sobre um entorno completamente arruinado. Olhando, tem-se a impressão de que estamos diante de um absoluto destroço, como uma cidade após sofrer um bombardeio. Contudo, os densos contornos dos seres e coisas retratados indicam que algo parece ainda subsistir, e com força. Em Revelado I, um grupo de pessoas parece olhar através de um muro. Algumas parecem acenar para o outro lado. O cenário é desolador, mas algum vínculo ali parece se formar. Em Revelado II, duas faixas horizontais, possíveis prateleiras, abrigam um grupo de silhuetas, talvez vasos com flores, que se enfileiram por vezes muito próximas, conferindo força ao conjunto. Schroeder opera por meio de destroços e fragmentos, mas, em meio a eles, parece resgatar uma energia primordial, capaz de subsistir aos mais profundos colapsos.
Mariana Tassinari, por sua vez, injeta dinamismo e vivacidade a formas aparentemente vazias e abstratas. Em uma recente série de trabalhos – um conjunto de bordados – pequenas e coloridas silhuetas se projetam ante fundos igualmente coloridos. Ainda que o trabalho possua certa inclinação pictórica, a artista faz questão de deixar as tramas e tessituras dos fundos, bem como as texturas macias das figuras do primeiro plano. Tratam-se de motivos abstratos, que em alguns momentos parecem prestes a se transformar em algo, no caso dos mais solitários, ou, quando se trata dos conjuntos, parecem buscar algum encaixe, juntar-se para fazerem parte de um todo. Ainda que não cheguem a tornar-se algo reconhecível, esse aspecto “dinâmico”, reforçado pelo colorido e pela linearidade angulosa, faz com que essas curiosas formas tenham algo de “vivo”. Parecem, inclusive, se destacar do suporte no qual se encontram, dado que Tassinari ressalta que, embora componham com o fundo, são feitas de matéria distinta dele. Assim, ao criar signos tão vibrantes, ela parece captar, por meio dessas curiosas peças, algo que ainda possa existir de vivo nesses fragmentos. Curioso também é o fato de haver aí certa ordenação, dado que existe um respeito pela linha e pela geometria. Num mundo onde tudo se dissolve, o ordenamento parece uma estratégia bem sucedida para que se capture a essência daquilo que existe.
Por fim, Mirela Cabral, cuja linguagem principal é a pintura, aqui se aventura em alguns curiosos bordados que de tempos em tempos revisita em sua prática. Em sua pintura, traços e linhas são frequentes, e espaços, seres e objetos por vezes parecem se desenhar, mas rapidamente colidem com a matéria pictórica da qual são construídos. Nos bordados esses sutis traços ressurgem, conformando misteriosas formas e quase-espaços e quase-seres, mas dessa vez é diferente. Diferente porque a tinta é líquida, o tecido não. A cor, sempre ela, aparece aqui, mas por meio de uma linearidade agitada, como se faíscas de cor rasgassem uma superfície silenciosa e monocromática. Ainda que falemos de um suporte palpável, existe um componente aqui que é etéreo. Os traços remetem a algo veloz, fugidio, que irrompe e imediatamente desaparece. Não à toa, os elementos que se projetam são apenas vestigiais, como estrelas cadentes no céu escuro. Se em sua pintura camadas e matérias se acumulam, aqui a artista se concentra no essencial, nas principais forças que agem sobre o cosmo. Com humildade, reconhece sua dinâmica, e busca não uma resposta, mas uma pista, um caminho, um comentário breve, retendo delas apenas o que é visível nessa aparição.
Indo da matéria bruta da natureza e seus processos, passando por cargas culturais, impulsos projetivos e lampejos espirituais, as artistas em questão fornecem caminhos para entender aquilo que nos compõe, que talvez não seja tão sólido como acreditemos, mas que mesmo nessa ausência de pontos fixos é capaz de consolidar poderosas narrativas.