Sudário | Allann Seabra

O Sudário de Allann Seabra
Ricardo Resende
A aura e o corpo glorioso são ritualísticos, são sombras do corpo do artista gravadas sobre superfície plana de tecido. As marcas do corpo são sombras fantasmagóricas deixadas sobre o tecido estendido no chão.
Acrílica sobre corpo sobre tela. Tela sob corpo besuntado de tinta preta imprime sobre o tecido as marcas do corpo que age no tempo, rolando pra cá, rolando pra lá, movimentando-se como se fosse uma letra de uma partitura musical que dança sobre linhas continuas.
Linhas que dão ou conduzem o tempo musical e que dão a noção desenhada da duração da sonoridade no tempo. Como se o tempo pudesse ser desenhado, registrado ou gravado.
As manchas pictóricas resultantes dessa ação do corpo do artista, entintado de preto sobre a tela, é como se a música virasse uma gravura materializada sobre o plano real da tela. Faz clara ação com o tempo e o espaço. A poética se dá, justamente, nesse gesto simples de imprimir com o próprio corpo. Ou pintar. Allann faz monotipia.
A monotipia é a forma de gravar e imprimir gestos únicos, isso é, uma gravura de uma cópia só que não tem a possibilidade reprodução. Não se repete o mesmo movimento ou traço sobre a superfície a ser gravada. Esse gesto foi definido de forma muito simples por Marcel Duchamp em sua canção “Faire une empreinte”, de 1913, em que grava na película de um filme a receita elementar: o gesto de imprimir uma figura sob pressão. Dessa maneira rompe também com a técnica (noção de gravar e imprimir) da gravura. Mais tarde, em 1947, foi a vez em que Jacson Pollock “gravou” apenas gotejando (pintando) a tinta sobre o plano (lona ou papel), formando linhas aleatórias com gestos controlados, mensurados e direcionados, embora pareçam informais.
A forma de imprimir de Seabra se dá também apenas uma vez, pois não é possível repetir o mesmo gesto e obter a mesma mancha. O movimento de gravar (pintar com o corpo) se dá sobre a tela não preparada, crua e esticada sobre o chão.
O corpo desce e rola sobre a tela e o título faz alusão há uma das gravuras mais antigas que se tem conhecimento, depois das marcas deixadas nas cavernas pelos homens da Idade da Pedra.
O Santo Sudário é um pedaço de tecido que carrega as marcas do rosto santo cultuado pelos católicos, acreditado ser da face de Cristo.
A exposição de Allann Seabra faz referência a esse gesto impresso no tempo. Inverte nos seus desenhos o mesmo processo da gravação encontrada no santo sudário.
O corpo performance, o corpo entintado, o corpo que performa (dança) sobre o papel, sobre a tela, o corpo que borra, o corpo que rola, o corpo que grava e faz da monotipia com tinta preta o registro do corpo dançante. A música que toca dá forma aos movimentos. O resulta é também pintura ou desenho do corpo borrado sobre a tela, registro de movimento que torna-se abstrato gestual.
Pianista de formação acadêmica, no meio do caminho de se tornar musico foi estudar artes visuais e formou-se na Escola de Belas Artes de São Paulo. Carrega a música e as artes visuais misturadas com a performance, vai resultar nesse trabalho híbrido. Pintar, se movimentar e marcar.
É sensorial. Cheiro de tinta, marcas do corpo, cheiros da alma, dobras e manchas que de tanto serem sobrepostas, repetidas, vão cobrindo a tela de um pretume característicos de uma gravura informal, musicada.
Os trabalhos ou desenhos ou pinturas de Allan é uma fusão musicada entre a performance, a dança e a gravura que nada mais são que o gesto das mãos, braços e pernas ou o simples contato do corpo com outra superfície que produz uma marca por pressão. De um corpo sobre outro corpo sobre outro corpo.
Não à toa utilizamos o verbo imprimir para falar que obtivemos uma forma (um desenho, uma pintura, uma gravura) por pressão. Nada mais do que isso.
No caso de Allann Seabra, é a gravação de um movimento sagrado e musicado que registra as marcas do próprio corpo sobre a lona. No lugar da transpiração exalada pelo corpo que marcou o santo sudário.
Nos trabalhos do artista, o suor é a tinta, a matéria essencial da arte que cobre colorindo o mudo.